Segmentação como Essência do Modelo de Franquia: Proteção do Know-How e Padronização da Rede
- Guilherme Vega

- há 2 dias
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Por: Júlia Fernandes Moura
Resumo:
Este artigo analisa a segmentação de mercado como um elemento essencial da Circular de Oferta de Franquia (COF) e Contrato de Franquia, defendendo que ela transcende a mera estratégia de marketing para se consolidar como núcleo do know-how transferido e pilar da identidade da marca. O estudo examina o alicerce jurídico que protege o direito da franqueadora de definir e exigir o cumprimento estrito do público-alvo, com base na Lei de Franquias (Lei nº 13.966/2019) e nos princípios da liberdade contratual e da função social do contrato (Código Civil). A análise aborda como o desvio da segmentação pactuada por um franqueado não representa uma simples falha operacional, mas um inadimplemento contratual que compromete a padronização da rede, dilui o valor da marca e configura concorrência desleal com os demais membros do sistema. Por fim, o artigo sugere diretrizes para franqueadoras sobre como blindar contratualmente essa segmentação e gerir juridicamente eventuais descumprimentos, visando a preservação da integridade, reputação e competitividade da rede de franquias.
Palavras-chave: Circular de Oferta de Franquia (COF). Contrato de franquia. Segmentação de mercado. Know-how. Padronização. Lei de Franquias. Proteção da Marca. Falha Operacional. Princípios da Liberdade Contratual. Função Social do Contrato.
Abstract:
This article analyzes market segmentation as an essential element of the Franchise Disclosure Document (COF) and Franchise Agreement, arguing that it transcends a mere marketing strategy to become the core of the transferred know-how and a pillar of brand identity. The study examines the legal foundation that protects the franchisor’s right to define and demand strict compliance with the target audience, based on the Franchise Law (Law No. 13,966/2019) and the principles of contractual freedom and the social function of contracts (Civil Code). The analysis addresses how a franchisee’s deviation from the agreed-upon segmentation does not constitute a simple operational failure, but rather a contractual breach that undermines network standardization, dilutes brand value, and amounts to unfair competition with other members of the system. Finally, the article suggests guidelines for franchisors on how to contractually safeguard this segmentation and legally manage potential breaches, aiming to preserve the integrity, reputation, and competitiveness of the franchise network.
Keywords: Franchise Disclosure Document. Franchise Agreement. Market Segmentation. Know-how. Standardization. Franchise Law. Brand Protection. Operational Failure. Principles of Contractual Freedom. Social Function of the Contract.
1. Introdução
O sistema de franquias (franchising) consolidou-se no Brasil como um dos modelos de negócio mais resilientes e dinâmicos. Sua estrutura fundamental repousa sobre um tripé: a cessão do direito de uso de uma marca consolidada, a transferência de know-how, que compreende a tecnologia de implantação e gestão do negócio, e a padronização operacional e visual da rede. Esses elementos, que justificam o pagamento de taxas pelo franqueado, têm como objetivo replicar um modelo de sucesso previamente testado e aprovado pela franqueadora.
Nesse contexto, a segmentação de mercado, ou seja, a definição de um público-alvo específico, seja por critérios demográficos, de gênero, estilo de vida ou preferências éticas e saudáveis, não constitui um mero detalhe de marketing, mas sim a própria essência do know-how e um dos pilares centrais da identidade da marca. Modelos de negócio como academias exclusivas para mulheres, clínicas de estética voltadas ao público masculino ou restaurantes especializados em nichos alimentares, como os veganos, ilustram claramente como a segmentação pode representar o principal diferencial competitivo, permitindo que a empresa prospere mesmo em mercados altamente saturados.
A Lei de Franquias (Lei nº 13.966/2019) estabelece o arcabouço jurídico que regula a relação entre franqueador e franqueado, com ênfase na transparência informativa pré-contratual, especialmente por meio da Circular de Oferta de Franquia (COF), documento essencial para a análise e tomada de decisão do potencial franqueado. No entanto, a gestão da rede e a preservação de sua integridade dependem da observância rigorosa dos padrões e diretrizes definidos pela franqueadora.
Nesse contexto, emerge uma tensão jurídica relevante: até que ponto a franqueadora pode exigir o cumprimento estrito da segmentação de mercado definida no modelo de negócio? E, por outro lado, quais são as implicações quando o franqueado, buscando aumentar seu faturamento no curto prazo, decide atender públicos que extrapolam o escopo originalmente previsto no contrato?
Este artigo defende a tese de que a segmentação, quando claramente definida em contrato, constitui cláusula essencial e obrigatória. Sua violação não é uma simples falha, mas um inadimplemento contratual que atinge todo o sistema de franchising, lesando a marca, a franqueadora e os demais franqueados da rede.
2. Desenvolvimento
2.1. A Natureza Jurídica da Segmentação no Contrato de Franquia
O debate sobre a segmentação de mercado no sistema de franquias tem início no reconhecimento da liberdade empresarial, princípio assegurado pela Constituição Federal, em seu art. 170, inciso IV, que consagra a livre iniciativa, bem como pelo Código Civil, em seu art. 421, que dispõe sobre a liberdade contratual e a função social do contrato. Nesse contexto, a franqueadora, enquanto idealizadora e detentora do modelo de negócio, possui ampla autonomia para definir sua estratégia empresarial, o posicionamento de mercado e o nicho de atuação que caracterizarão sua marca e orientarão toda a rede de franquias.
Não se trata de prática discriminatória, mas sim de especialização mercadológica. A jurisprudência brasileira tem consistentemente reconhecido a licitude do direcionamento de atividades a públicos específicos, desde que não haja violação a normas de ordem pública. Como destaca o Superior Tribunal de Justiça (STJ), é lícito ao empresário focar sua atividade, desde que não haja restrição discriminatória injustificada (ex: REsp 1.634.851/SP). A existência, por exemplo, de marcas distintas dentro de um mesmo grupo empresarial para atender públicos diferentes, como masculino e feminino, reforça a legitimidade dessa estratégia.
No âmbito do franchising, essa liberdade empresarial assume papel fundamental. O art. 2º da Lei nº 13.966/2019 define o contrato de franquia como aquele que envolve a cessão do direito de uso de marca e da tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional. Essa “tecnologia”, entendida como o know-how, abrange todos os processos operacionais, protocolos de atendimento, padrões de comunicação visual e, de forma central, a definição do público-alvo ao qual o negócio se destina.
Quando um franqueado adere ao sistema, ele não está adquirindo um negócio genérico, mas ingressando em uma rede estruturada, comprometendo-se a operar conforme o modelo específico concebido pela franqueadora. A segmentação, portanto, não constitui uma mera sugestão, mas um elemento essencial e indissociável do know-how pelo qual o franqueado realiza o investimento e ao qual se vincula contratualmente.
A padronização é a um pilar essencial de uma rede de franquias. Garantindo que o consumidor receba o mesmo nível de qualidade, o mesmo produto e a mesma experiência em qualquer unidade da rede. Essa uniformidade constrói o valor da marca.
Quando um franqueado decide, unilateralmente, desviar-se da segmentação, por exemplo, uma clínica de estética masculina que passa a atender o público feminino, ele incorre em uma série de infrações de natureza contratual e sistêmica, que comprometem a padronização, a identidade da marca e a coerência estratégica da rede:
1. Quebra do know-how: ao desviar-se da segmentação definida, o franqueado passa, na prática, a criar um modelo de negócio, não testado ou homologado pela franqueadora, utilizando indevidamente a marca e a estrutura operacional para um fim diverso daquele contratado.
2. Diluição da marca: a identidade e o posicionamento da marca ficam comprometidos. Se a proposta é ser uma clínica especialista no atendimento do púbico masculino, por exemplo, o atendimento ao público feminino confunde o mercado e neutraliza o principal diferencial competitivo. O consumidor deixa de reconhecer com clareza o que esperar daquela marca.
3. Concorrência desleal intra-rede: o franqueado que “desvia o nicho” pode obter vantagem econômica de curto prazo, mas o faz em detrimento dos demais franqueados. Tal conduta desequilibra o sistema, prejudicando aqueles que seguem as diretrizes e dependem da coerência do posicionamento da marca para atrair o público-alvo correto.
4. Risco operacional e reputacional: os protocolos, equipamentos e treinamentos costumam ser desenvolvidos especificamente para o público-alvo previsto no modelo de franquia. O atendimento a outro público pode revelar-se inadequado, gerar insatisfação do cliente e causar danos reputacionais que atingem não apenas a unidade, mas toda a rede.
A observância dos padrões não é uma opção, mas uma obrigação basilar. Conforme destaca a doutrina, o franqueador estabelece "condições previamente estipuladas, especialmente em relação ao padrão do franqueador, elemento essencial do sistema de franchising" (SANTOS, Alexandre David. Comentários à nova lei de franquia Lei n. 13.966/2019. 2. ed. São Paulo: Almedina, 2023, p. 36). A quebra da segmentação é, talvez, a mais grave forma de quebra de padronização, pois ela altera a própria natureza do negócio.
2.3. Diretrizes para Franqueadoras: Blindagem Contratual e Gestão de Conflitos
Diante da gravidade da violação da segmentação, a franqueadora deve agir para proteger a integridade da rede. A omissão da franqueadora diante de um desvio de padrão pode ser interpretada, inclusive, como falha em seu dever de gestão e proteção da marca perante os demais franqueados.
Para isso, são necessárias medidas preventivas e reativas:
1. Clareza Absoluta na COF e no Contrato: A Circular de Oferta de Franquia (COF) e o Contrato de Franquia devem ser explícitos, claros e inequívocos ao definir o público-alvo. A segmentação não deve ser tratada em cláusulas genéricas, mas sim em cláusulas essenciais que definem o objeto do contrato e as obrigações fundamentais do franqueado. Deve-se estipular que o atendimento a públicos fora do escopo definido é considerado uma infração grave.
2. Manuais Operacionais Detalhados: Os manuais da franquia devem reiterar e justificar a importância da segmentação, detalhando os protocolos de atendimento e comunicação voltados exclusivamente ao público-alvo.
3. Treinamentos: A franqueadora deve promover treinamentos periódicos para franqueados e suas equipes, destacando a importância da segmentação para a marca.
4. Monitoramento e Auditoria (Consultoria de Campo): A franqueadora deve utilizar suas ferramentas de supervisão, como a consultoria de campo e o "cliente oculto", não apenas para verificar a limpeza ou venda de produtos não homologados, mas para auditar ativamente se a segmentação está sendo respeitada.
5. Ação Rápida e Proporcional (Gestão da Infração): Ao identificar a infração, a franqueadora deve agir com celeridade, seguindo o rito previsto em contrato. Isso geralmente envolve:
Notificação Extrajudicial: Comunicar formalmente o franqueado sobre a infração, apontando as cláusulas contratuais violadas e estipulando um prazo para a regularização imediata da conduta.
Aplicação de Penalidades: Caso a conduta persista, aplicar as penalidades contratuais cabíveis, que podem incluir multas.
Rescisão Contratual: Em casos de reincidência ou manutenção da infração grave, a rescisão do contrato por justa causa do franqueado é a medida cabível e juridicamente defensável, protegendo toda a rede.
3. Conclusão
A segmentação de mercado na Circular de Oferta de Franquia (COF) e Contrato de Franquia é o alicerce sobre o qual o negócio foi construído. A definição de um público-alvo específico é parte integrante e essencial do know-how transferido e um dos principais ativos que compõem o valor da marca.
O franqueado que, deliberadamente, ignora a segmentação definida contratualmente para obter um ganho de curto prazo, não está apenas descumprindo uma diretriz da franqueadora, mas descaracterizando o modelo de negócio, comprometendo a coerência da marca e prejudicando toda a rede de franqueados.
Cabe às franqueadoras estabelecerem, de forma juridicamente robusta em seus instrumentos (COF, Contrato de Franquia e Manuais), a essencialidade da segmentação. E, mais importante, cabe-lhes o dever para com a rede de zelar ativamente pelo cumprimento desses padrões, garantindo que marca seja apresentada de forma uniforme e íntegra em todas as unidades.
Referências
SANTOS, Alexandre David. Comentários à nova lei de franquia Lei n. 13.966/2019. 2. ed. São Paulo: Almedina, 2023, p. 36.



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